Menina suruarrá vive seu dia de fama na escola onde estuda e fascina colegas e professores. Ela tenta esquecer os horrores que enfrentou na tribo, mas deseja rever o único irmão, que a salvou
MARCELO ABREU DA EQUIPE DO CORREIO
Ela acordou bem cedo, como de costume. Na verdade, pulou da cama. Adora ir à escola e não gosta de chegar atrasada. Sabe que lá vai encontrar as amiguinhas e a professora de quem tanto gosta. Às vezes sonha que está no colégio. Mal chegou à sala de aula e o comentário era um só: a foto dela no jornal. Alguns perguntaram: “Tia, por que a Hakani saiu no jornal? Ela é famosa? Virou artista?” Com delicadeza, Deise Boechat, a professora da 2ª série do Leonardo da Vinci, na 914 Norte, explicou a situação para seus meninos e meninas de 7 e 8 anos de idade. Contou, com extremo cuidado, que ali estava uma história de vida. Que Hakani era uma menininha muito forte e querida por todos.
De repente, ela mesma, a indiazinha suruarrá — etnia que vive semi-isolada no sul da Amazônia —, falou aos colegas: “Meus pais tomaram veneno porque não deram conta de cuidar de mim”. Era o bastante. Depois, todos voltaram às atividades normais. Era hora de voltar a ser criança, pensar como criança e ter esperança de criança. O sinal do recreio lhes trouxe exatamente essa certeza. Ana Hakani dos Santos, de 12 anos, venceu os horrores da rejeição da própria tribo e escapou da morte sucessivas vezes. Foi adotada aos 5 anos por um casal de missionários. A história foi contada na edição de ontem do Correio Braziliense.
No meio da tarde, de maiô com a cara da Minnie estampada na frente, e usando óculos de proteção solar, Hakani foi à aula de natação. Ela adora nadar. Parece um peixe dentro d’água. Lá também fez novos amigos. Riu, conversou, rodopiou, correu e se jogou na piscina com cara de contentamento. O professor Tiago Drummond, 25, elogia: “A integração dela com as outras crianças é perfeita. Ela está começando a nadar os estilos peito e costas.”
A vida em pesadelo
Essa é a parte boa e emocionante da história de Hakani. A que ela gosta de contar e lembrar. Tudo que a fez chorar, ela prefere esquecer. Como era diferente das outras crianças — não falava e nem andava (o povo da tribo acreditava que ela era filha de um “espírito mau”) —, Hakani e Niawi, irmão um ano mais velho, sofreram todo o tipo de perseguição. Quando ela completou dois anos de idade — e as diferenças físicas e motoras em relação às outras crianças ficaram mais evidentes —, os pais, como ordem da tribo, teriam que matá-la. O método seria dar aos dois filhos goles de chá de timbó, veneno extraído de um cipó.
Desesperados com a obrigação, acabaram eles mesmos tomando o chá. Morreram agonizando. Cinco crianças ficaram órfãs. Hakani e Niawi — ambos considerados “filhos do mau” — foram entregues aos cuidados do irmão mais velho, Aruwaji, então com 15 anos. Os dois passaram a viver longe de tudo e todos. Era como se não existissem. Aruwaji, então, também obrigado pela tribo, teria que matar os dois irmãos. Tentou fazê-lo a golpes de porrete. Sangrando, Hakani chorou antes de ser enterrada.
Um outro irmão, que assistia à cena, salvou-a. Niawi, mais fragilizado pelos golpes, não esboçou reação. Há quem diga que, horas depois, tenha escutado seu choro debaixo da cova rasa. Mesmo assim, o menininho não pôde ser salvo. Foi enterrado vivo. Inconformado por não ter completado a missão — para os suruarrás matar é obrigação que não deve deixar de ser cumprida —, Aruwaji se matou tomando o chá do timbó.
Mas o drama de Hakani não havia parado por aí. O avô materno decidiu que ele mesmo daria um fim na neta. E para isso usou seu instrumento de caça. Flechou-a entre o peito e o ombro. Mesmo ferida, Hakani, mais uma vez, sobreviveu. O avô, transtornado, tomou o chá de timbó. A menina, que contava 5 anos, não andava, não falava e pesava cerca de 7kg, passou a ser cuidada pelo irmão do meio. Bibi, com 9 anos e do jeito dele, cuidou de Hakani. Dava-lhe comida, banho e, para protegê-la dos ataques de flecha, deixava-a longe do contato com as pessoas da tribo.
Um pai, uma mãe
Um casal de missionários que fazia trabalhos com os suruarrás soube do drama de Hakani. Edson Suzuki, paulista de 45 anos, e a mulher dele, Márcia, carioca, 44, começaram a luta para adotar a menina. Cinco anos depois, já que ninguém da família quis ficar com ela, um juiz do Juizado de Infância de Manaus sentenciou: Edson e Márcia seriam os pais adotivos da menina. E começou a peregrinação dos pais em busca de tratamento médico.
Em Porto Velho, o primeiro diagnóstico: Hakani tinha hipotireoidismo congênito — alteração na produção dos hormônios do crescimento. De Porto Velho, a indiazinha foi levada ao Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP) para fazer exames mais detalhados. O “espírito mau” era apenas uma desorganização neuromotora. O mesmo mal que acometera o irmãozinho enterrado vivo.
Com medicação e alimentação adequadas, Hakani começou a se desenvolver. Cresceu, engordou, começou a falar, andar e a interagir. No ano passado, desembarcou com os pais em Brasília. Mora na Asa Norte e estuda no Colégio Leonardo da Vinci. Tornou-se uma menina normal. Fez amiguinhos, gosta da escola, da professora, de desenhos animados (o Happy feet é o seu favorito), e de bolo de chocolate com morango. Acostumou-se com o novo mundo que agora a cerca.
Em janeiro, Edson e Márcia pretendem voltar com Hakani à tribo onde ela nasceu. Hakani fez questão de esquecer tudo. Mas de Bibi, o irmão que a salvou da morte, jamais. Ele é o único sobrevivente da família, já que todos tomaram o veneno. “Hakani pergunta pelo irmão, diz que tem saudade e gostaria de revê-lo. Temos um pouco de receio de como ela vai reagir ao voltar à selva, mas é um direito dela. É importante para ela manter esse laço”, avalia a mãe. Hakani, na língua falada pelos índios suruarrás, quer dizer “sorriso”. Hoje, ela carrega o nome estampado no próprio rosto. De uma história onde quase tudo seria improvável nasceu um fiapo de esperança. Isso, talvez, seja o verdadeiro significado do renascimento.