Infanticídio põe em xeque respeito à tradição indígena
ONG levanta debate sobre direito à vida; antropólogos condenam imposição de lei e defendem que mudança ocorra por meio do diálogo
Em cerca de 20 das mais de 200 etnias do país, costume leva à morte gêmeos, filhos de mães solteiras e crianças com deficiência
No Xingu, Paltu Kamaiurá segura seu filho, Mayutá, que foi salvo da morte a que estava destinado por sua tribo; seu irmão gêmeo foi morto, como manda a tradição
Mayutá, índio de quase dois anos de idade, deveria estar morto por conta da tradição de sua etnia kamaiurá. Na lei de sua tribo, gêmeos devem ser mortos ao nascer porque são sinônimo de maldição. Paltu Kamaiurá, 37, enviou seu pai, pajé, às pressas para a casa da família de sua mulher, Yakuiap, ao saber que ela havia dado à luz a gêmeos. Mas um deles já tinha sido morto pela família da mãe.
Paltu enfrentou discriminação da tribo, para a qual a criança amaldiçoaria a aldeia. Relutou, porém, em sair do parque do Xingu (MT), onde vive sua etnia e outras 13, muitas das quais praticam o infanticídio.
No ano passado, ele soube do trabalho da ONG Atini, que combate a prática, por meio de sua irmã Kamiru, que desenterrou o menino Amalé, condenado a morrer por ser filho de mãe solteira. Kamiru teve contato com a entidade em Brasília, ao buscar tratamento médico para o filho adotivo.
Paltu pediu ajuda à ONG para conscientizar os índios de sua aldeia. A entidade foi criada há cerca de dois anos pelos lingüistas Márcia e Edson Suzuki, que em 2001 adotaram Hakani, 12. Devido à desnutrição em decorrência de hipotireoidismo congênito, que seus pais acreditavam ser uma maldição, Hakani, da etnia suruarrá, deveria morrer. Foi salva pelo irmão.
É Hakani que dá nome ao documentário dirigido pelo diretor e produtor norte-americano David L. Cunningham, que está em fase de finalização e deve ser lançado neste mês no Brasil e nos Estados Unidos. Rodado em fevereiro em Porto Velho (RO) com o apoio da Atini, o vídeo mostra a história de Hakani e depoimentos contra o infanticídio, na voz de índios.
Ainda praticado por cerca de 20 etnias entre as mais de 200 do país, esse princípio tribal leva à morte não apenas gêmeos, mas também filhos de mães solteiras, crianças com problema mental ou físico, ou doença não identificada pela tribo.
Projeto de lei
O documentário aborda projeto de lei que trata de “combate às práticas tradicionais que atentem contra a vida”, que tramita na Câmara desde maio passado. A Lei Muwaji, como é chamada em homenagem à índia que enfrentou a tribo para salvar sua filha com paralisia cerebral -caso que inspirou a criação da Atini-, estabelece que “qualquer pessoa” que saiba de casos de uma criança em situação de risco e não informe às autoridades responderá por crime de omissão de socorro. A pena vai de um a seis meses de detenção ou multa.
A proposta é polêmica entre índios e não-índios. Há quem argumente que o infanticídio é parte da cultura indígena. Outros afirmam que o direito à vida, previsto no artigo 5º da Constituição, está acima de qualquer questão.
“Nós vivemos sob uma ordem legal e a lei diz que o direito à vida é mais importante que a cultura”, afirma Maíra Barreto, doutoranda em direitos humanos pela Universidade de Salamanca (Espanha), cuja tese é sobre infanticídio indígena.
Para ela, conselheira da Atini, há incoerência no fato de o Brasil ser signatário de convenções internacionais que condenam tradições prejudiciais à saúde da criança e não cumpri-las no caso dos índios.
Em 2004, o governo brasileiro promulgou, por meio de decreto presidencial, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que determina que os povos indígenas e tribais “deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos”.
Antes disso, em 1990, o Brasil já havia promulgado a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, que reconhece “que toda criança tem o direito inerente à vida” e que os signatários devem adotar “todas as medidas eficazes e adequadas” para abolir práticas prejudiciais à saúde da criança.
O antropólogo Ricardo Verdum, do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), acha o projeto de lei uma intromissão no livre-arbítrio dos índios. “Querer impor uma lei é agressivo, é uma violência.”
O antropólogo Bruce Albert, da CCPY (Comissão Pró-Yanomami), diz que, para os yanomamis, “só as crianças às quais se podia dar a chance de crescer com saúde eram criadas”.
O missionário Saulo Ferreira Feitosa, secretário-adjunto do Cimi (Comissão Indigenista Missionária), vê no debate conflito entre a ética universal e a moral de uma comunidade. “Ninguém é a favor do infanticídio. Agora, enquanto prática cultural e moralmente aceita, não pode ser combatida de maneira intervencionista.”
Para Márcia Suzuki, presidente da Atini, o debate originado a partir do projeto traz à tona a questão da saúde pública desses povos.
Ex-presidente da Funai afirma que sofreu “dilema’
O antropólogo Mércio Pereira Gomes, que foi presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio) nos quatro primeiros anos do governo Lula, admite que sofria “um dilema muito grande” no órgão diante da questão do infanticídio. Como cidadão, é contrário à prática, mas como antropólogo e presidente do órgão, discorda de uma política intervencionista.
Segundo ele, há de cinco a dez mortes por infanticídio no Brasil por ano. Para tornar a política indigenista mais eficiente, Gomes afirma que a questão da saúde, hoje com a Funasa, deveria voltar para a Funai, de onde saiu em 1999.
Para as tribos, explica, o índio só considera um ser como pessoa quando ele é recebido pela sociedade. “Quando se pratica infanticídio, do ponto de vista cultural -não do biológico-, ainda não se está considerando um ser como completo. A antropologia analisa desse modo. Sob essa lógica cultural, não é uma desumanidade.”
Segundo ele, a Funai “não toma uma posição” sobre o infanticídio, mas busca intervir em alguns casos. “Há uma busca de soluções, como a adoção.” Ele é descrente em relação aos efeitos de uma lei. “Quem vai poder fazer isso vai ser uma Funai com capacidade de dialogar.”
Número de crianças mortas é desconhecido
O número de índios mortos por infanticídio no Brasil é uma incógnita. Nos dados da Funasa (Fundação Nacional de Saúde) sobre mortalidade infantil indígena, ele aparece somado a óbitos causados por “lesões, envenenamento e outras conseqüências de causas externas”.
Esse grupo responde por 0,4% do total das mortes de menores de um ano de idade, segundo os últimos dados disponíveis da Funasa, de 2006. Naquele ano, foram 665 óbitos no país por mortalidade infantil indígena.
A explicação do órgão para a falta de dados sobre mortos por infanticídio está na forma como a identificação ainda é feita. Quem contabiliza os óbitos e os repassa para a sede da Funasa são os 34 Dseis (Distritos Sanitários Especiais Indígenas) espalhados pelo país para atender aos cerca de 460 mil índios.
Wanderley Guenka, diretor há cerca de oito meses do Departamento de Saúde Indígena da Funasa, acrescenta que muitas vezes o problema é anterior à contabilização dos dados, quando nem é possível identificar que houve infanticídio. O problema aumenta, diz o servidor, quanto mais difícil for o acesso à aldeia e o contato regular com os índios.
“Em Mato Grosso do Sul, é fácil monitorar os índios desde a gestação. Eles estão mais próximos de centros urbanos. Na Amazônia, para chegar aos yanomamis, o deslocamento tem de ser aéreo ou com barco”, afirma Guenka.
De acordo com o órgão, está sendo implantada uma política de investigação das mortes para que, com mais detalhes repassados pelos Dseis, a Funasa identifique a causa do óbito.
Para Márcia Suzuki, da ONG Atini, uma forma de diminuir os casos de infanticídio seria a realização de pré-natal nas aldeias, principalmente naquelas onde gêmeos são rejeitados. “Essas pessoas têm o direito de saber, por exemplo, que existe possibilidade de tratamento ou cirurgia para resolver certos problemas congênitos.”
O médico sanitarista Douglas Rodrigues, que trabalha há mais de 20 anos no Projeto Xingu da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), relata que a falta de estrutura é um empecilho. “Já existe ultrassom portátil, mas nós não temos. A gente pede, o Ministério da Saúde não manda, fica nesse vai-não-vai. Ultrassom até hoje não está disponível no Xingu nem em lugar nenhum.”
Rodrigues acrescenta, no entanto, que não é só a falta de estrutura que impede o trabalho dos profissionais de saúde. “Não dá para acompanhar a hora do parto a não ser que o índio avise. Se não avisar, quando vamos lá às vezes a criança já morreu.”
Folha de São Paulo, 06 de abril de 2008
ANA PAULA BONI, DA REDAÇÃO