Eu estava na aldeia quando ela nasceu. Eu, uma lingüista carioca tentando analisar o sistema gramatical de uma língua desconhecida, e ao mesmo tempo tentando sobreviver no meio de uma tribo remota do Amazonas. Meu marido, um lingüista descendente de japonês com dotes artísticos, mas que parecia perfeitamente adaptado à vida na floresta. Naquela manhã vimos Bujini passar, uma índia jovem e bonita, segurando o barrigão de nove meses de gravidez. Em pouco mais de meia hora ela voltou, carregando nos braços uma linda menininha.
Alguns anos depois acompanhamos, perplexos, a tragédia que caiu sobre a família de Bujini. Dos cinco filhos que ela teve, apenas os três primeiros eram saudáveis. Os dois mais novos, para desgraça da família, apresentaram problemas de desenvolvimento motor. Para os suruwahá, qualquer deficiência física ou mental é considerada uma maldição. A criança é abandonada na floresta, atingida com uma flecha envenenada ou enterrada viva. Os próprios pais têm o dever de sacrificar a criança pelo bem da tribo.
Bujini sofreu muito com a pressão dentro da aldeia, os olhares atravessados, o desprezo geral. O desfecho era previsível. Bujini e seu marido, sem coragem de matar as crianças, preferiram se suicidar. Após o funeral, o irmão mais velho se viu forçado a cumprir a maldita tarefa de enterrar seus irmãos deficientes. O menino, que tinha cerca de cinco anos de idade, e a irmã de pouco mais de dois anos, foram enterrados vivos. Mas a menina foi mais forte. Gritou tanto que alguém resolveu resgatá-la do buraco. A partir desse momento, ela sobreviveu por três anos, sendo considerada um ser sem alma, condenado a abusos físicos e psicológicos, a beber água de poças e se alimentar de lixo, insetos, casca de árvores. Só não morreu porque um de seus irmãos, o Bibi, o mesmo que a resgatara da cova, dividia com ela os restos de comida que conseguia juntar.
Foram três anos de total abandono. Finalmente Bibi, percebendo que ela ia morrer a qualquer momento, decidiu entregá-la em nossas mãos. Quando começamos a cuidar dela, ela tinha cinco anos, mas pesava apenas 7 sete quilos e media 69 centímetros. Ela não andava, não falava, e não tinha nenhuma expressão facial. O corpinho dela estava cheio de feridas devido às constantes agressões – facadas, flechadas, queimaduras e ao severo estado de desnutrição. À medida que eu ia tratando as feridas físicas, fui me apegando àquela menina sem nome – pejorativamente apelidada de “Jeweke”, que significa pequena.
Numa tarde, enquanto cuidava dela, eu me lembrei que sua mãe gostava de chamá-la de “Hakani”, que significa sorriso. Isso porque, quando bebê, ela tinha o rostinho constantemente iluminado por seus sorrisos e sua alegria. Agora ali estava ela, com uma expressão totalmente dura e apagada, incapaz de expressar qualquer reação. Naquele momento eu senti muita pena. Olhei nos olhos dela e apenas sussurrei “Hakani”.
Fiquei surpresa com o que vi. Pela primeira vez ela olhou nos meus olhos e seus olhinhos pretos brilharam. Meu coração deu um salto e eu imediatamente entendi o que se passava. Olhei nos olhos dela e falei, num suruwahá bem firme, mas cheio de ternura. “O seu nome não é Jeweke, você é a Hakani e eu adoro você!” Ela olhou para mim e retribuiu com seu primeiro sorriso, ainda tímido, iluminando seu rostinho magro e sofrido. Naquele momento, entendi que não estava ali apenas para tratar suas feridas físicas, mas também as profundas feridas e cicatrizes de sua alma. Então aconteceu, estava estabelecida a conexão, estava aberto o caminho. Agora éramos mãe e filha, amigas e cúmplices. Nada poderia nos separar. E eu decidi que iria lutar pela vida da Hakani.
Conhecendo as falácias do indigenismo brasileiro, Suzuki e eu sabíamos desde o início que o processo de adoção não seria fácil. Sabíamos que, como indígena de uma tribo semi-isolada, Hakani seria tratada como uma espécie de criatura não-humana. Sabíamos que o suposto “direito da comunidade” de ter sua lei própria seria evocado. Mas estávamos decididos e o primeiro desafio seria conseguir retirá-la da área indígena. Através do sistema de radiofonia da aldeia, pedimos insistentemente a autorização da FUNASA para o resgate, mas eles achavam que não deveríamos interferir. Como era um caso que envolvia uma questão cultural, os técnicos de saúde precisavam de uma resposta da Coordenação Nacional de Saúde Indígena, em Brasília, que nunca vinha. Finalmente, depois de um mês de insistência e muita pressão, conseguimos a autorização.
Logo que chegou na cidade, Hakani teve que ser internada devido ao estado de profunda desnutrição. Em poucas semanas descobrimos que além da desnutrição ela sofria de raquitismo e de hipotireoidismo congênito. O tratamento foi intensivo e absorveu a maior parte de nosso tempo e energia durante o primeiro ano. Mas a resposta de Hakani foi formidável – logo ela começou a andar, falar, cantar e fazer bagunça. O senso de humor e a alegria da Hakani explodiam a cada dia e contagiavam todos que se aproximavam. A adaptação à vida na cidade foi automática – era evidente o prazer que ela sentia ao realizar rotinas simples como se sentar à mesa e comer uma refeição em família com segurança. Entre uma colherada e outra seus olhinhos pretos nos procuravam com gratidão e entusiasmo.
A batalha legal para adotá-la foi enorme. Foram cinco anos de burocracia, de desinteresse, de relatórios contrários à adoção. O Ministério Público chegou e emitir um documento recomendando à FUNAI que retirasse Hakani de nossa tutela e a “devolvesse” à aldeia. Um dos laudos antropológicos da época declara que preservar a vida de Hakani constituía uma ameaça à cultura suruwahá, uma interferência em uma “prática cultural repleta de significados”. Impregnados de um indigenismo idealista e caricato, esses antropólogos priorizavam a preservação das tradições culturais a qualquer preço, mesmo que isso implicasse em violação um direito humano fundamental. Agindo assim, eles revelam uma absurda visão distorcida do indígena, a sua coisificação – ao invés de cidadãos, eles são tratados como animais exóticos em risco de extinção. A bizarrra preservação do zoológico humano perdido no meio da floresta amazônica é muito mais importante que o próprio ser humano. Graças a Deus a adoção de Hakani acabou sendo concluída, quando o Dr. Waldecy Castellar Citon, Juiz da Infância de Porto Velho, decidiu tratá-la como gente. “Antes de ser índia ela é uma criança”, foi o que ele declarou durante o processo.
Hakani mudou nossa história, e nos inspirou a ajudar outras crianças indígenas em risco de infanticídio. Hoje ela tem 12 anos. É uma menina linda, alegre, comunicativa. Estuda numa escola regular, lê, escreve e é excelente desenhista. Viaja por diversos países e já esteve até na sede da ONU em Nova York. Já existe inclusive um documentário lançado nos Estados Unidos contando sua história. À medida que sua história foi se tornando conhecida, passamos a ser procurados por mães e pais indígenas de diversas etnias. Eles querem ajuda para salvar seus filhos do sacrifício.
Movidos pela solidariedade a essas famílias, criamos a organização ATINI (www.atini.org.br), que se dedica a apoiar a luta de indígenas que se posicionam contra o infanticídio. Hoje atendemos indígenas de diversas etnias. São famílias que tiveram que sair da aldeia para salvar a vida de crianças consideradas indesejadas, imperfeitas ou amaldiçoadas, gêmeos, trigêmeos, filhos de mãe solteira, ou deficientes físicos ou mentais.
Através da ATINI a sociedade brasileira está começando a tomar conhecimento do drama e do sofrimento que a prática do infanticídio causa nas aldeias. As pessoas estão começando a pensar no indígena com mais humanidade, com mais sensibilidade. Aos poucos a idéia do índio como simples objeto de curiosidade passa a ser substituída pela verdade simples de que, apesar das diferenças culturais e históricas, eles são pessoas como nós, sujeitas aos mesmos sentimentos. Através da ATINI, nossa sociedade tem a oportunidade de ser solidária com os povos indígenas, através do trabalho voluntário ou de adesão ao um programa de apadrinhamento. Qualquer pessoa pode apadrinhar uma criança indígena sobrevivente de infanticídio, e assim ajudar a garantir seu direito à vida, ao tratamento médico, à educação, a um abrigo seguro, à dignidade enfim. Com programas desse tipo, podemos evitar que histórias tristes como a da Bujini se repitam – uma mãe obrigada a dar fim à própria vida por não ter coragem de matar sua filha.
Marcia Suzuki, Junho de 2008