Publicada no jornal Correio Braziliense (23/09), a matéria Choque de Culturas critica a adaptação de crianças indígenas ligadas à Atini às escolas de Brasília. “O DF, formalmente, não possui população indígena, o que desobriga a Secretaria de Educação de manter escolas bilíngües.” Mas estima-se que população indígena em Brasília se aproxima a 8 mil pessoas – onde estão as outras crianças? onde está o direito à educação? onde está a inclusão social?

CHOQUE DE CULTURAS
Erica Montenegro – Correio Braziliense

Amalé, 4 anos, brinca com os colegas de pular corda. Todos estão descalços, menos ele. Kanuayru,10 anos, guarda o material escolar em uma mochila cor- de-rosa da Barbie. Makaruti, 12 anos, arrepiou o cabelo, ganhou o apelido “Maka” e o amor platônico das meninas. Desde o início do ano, pelo menos quatro escolas da rede pública brasiliense convivem com índios entre seus estudantes. A adaptação deles à sala de aula está exclusivamente nas mãos dos professores, já que não há projeto pedagógico diferenciado para atendê-los.

A diretriz do Ministério da Educação (MEC) é que os índios sejam alfabetizados em escolas bilíngües. Nelas, o professor costuma pertencer à mesma etnia dos alunos e, portanto, compartilha com eles a língua, as tradições e os costumes. O modelo foi pensado para que a população indígena tenha acesso à educação, sem que o ensino promova a aculturação (perda dos valores tradicionais). “São escolas completamente diferentes. O método de ensino se adapta à cultura de cada etnia. Os conteúdos aproveitam as vivências”, explica Gersem Baniwa, coordenador geral de Educação Escolar Indígena do MEC.

A educação que Amalé, Kanuayaru, Makaruti e os outros índios estão recebendo não tem nada a ver com a que é defendida pelo MEC. Nas salas de aula brasilienses, eles aprendem o que os colegas urbanos aprendem. As regras construídas na nossa sociedade passam a ser os parâmetros de comportamento seguidos por eles. Nesse sentido, o pequeno Amalé calçado quando todos os outros estão descalços é significativo. “É um sinal de que ele não entendeu o novo código ao qual está sendo submetido. Alguém disse que ele deve andar calçado, então, ele não arrisca tirar o tênis em nenhum ocasião”, interpreta o antropólogo Mércio Pereira, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Etnias
Os professores da Escola Classe da Granja do Torto se esforçam para incluir os novos alunos. “Tento integrar, peço que eles contem sobre os lugares de onde vieram”, relata a professora Rosane Brito, responsável pela turma da 1ª série B. Bem-intencionada, ela procurou informações na internet sobre as três etnias das quais tem representantes em sala de aula: Suruwaha, Ticuna e Kamayurá. “É um trabalho desafiador. Estou gostando”, conta Rosane. Nem a diferença de idade entre Makaruti e os outros colegas — aos 12 anos, ele tem pelo menos quatro anos a mais que a média da turma — incomoda. “Ele é muito dócil, ajuda a cuidar das crianças, se sente como pai delas”, relata a professora Rosane. Na Escola Classe da Granja do Torto, há nove alunos índios.

Na Escola Classe da 316 Norte, onde estudam outros dois índios, a experiência tem sido mais complicada. A diretora Marilda Pereira, 67 anos, chegou a pedir ajuda ao Ministério Público para lidar com o caso de um garoto que, aos 13 anos, está matriculado na 1ª série. “Ele ainda não fala o português, não respeita a professora, não interage com os colegas”, conta ela, que em 48 anos de Fundação Educacional nunca tinha tido um aluno índio.

Segundo Marilda Pereira, o aluno está sempre com um pedaço de pau na mão e fala muito em flechas. “Ano que vem ele vai para o supletivo, estamos fazendo o possível para melhorar o português dele”, conta. A professora do estudante não quis falar com o Correio. O rapaz é da etnia Suruwaha, tribo que vive em uma área isolada do Amazonas e mantém pouco contato com os brancos. Aos 13 anos, os suruwaha já estão se preparando para casar.

Longe do passado, Amalé tem muitos amigos no Jardim de Infância da 312 Norte. Durante a recreação, não pára de brincar com os coleguinhas. Quando chegou, em fevereiro, misturava o português com a língua Kamayurá e contava histórias sobre a aldeia, localizada no Parque Nacional do Xingu. Com o tempo, está se afastando do passado. “Não adianta insistir, ele diz que esqueceu o kamayurá”, relata a professora Márcia Rodrigues.

Os alunos de Rosane, da Granja do Torto, também dizem esqueci quando solicitados a falarem suas línguas nativas. São extremamente tímidos, exceto Eli, ticuna de 7 anos de idade, que está na idade correta e não tem deficiências de aprendizado.

Para Gersem Baniwa, o esqueci das crianças e adolescentes repete a estratégia de sobrevivência que os povos indígenas adotaram durante quase toda a história do Brasil. “Ser índio era péssimo antes da Constituição de 1988. Fingíamos que erámos brancos porque não tínhamos direitos “. Dizer que não lembram mais das aldeias seria a maneira de os estudantes se enturmarem com os colegas.

O DF, formalmente, não possui população indígena, o que desobriga a Secretaria de Educação de manter escolas bilíngües. A subsecretária de Planejamento e Inspeção de Ensino, Solange Castro, reconhece que existe a necessidade de especialização para atender os suruwahas, ticunas e kamayurás que estão entrando na rede. “Sem especialização não há como fazer uma adaptação sem traumas. Esses meninos têm direito a educação. Mas temos de buscar saídas para oferecê-la da melhor maneira possível.”

Luta contra o infanticídio
Os índios estudantes do DF têm em comum o fato de estarem ligados à Atini — Voz pela Vida, uma ONG que luta contra a prática de infanticídio nas aldeias. Criada em 2006 pelos missionários evangélicos Márcia e Edson Suzuki, a Atini presta apoio aos índios que querem ir contra às tradições de controle populacional de suas tribos.

O pequeno Amalé, por exemplo, era filho de mãe solteira e seria enterrado vivo não fosse a índia Kamiru adotá-lo como filho. A criança apresentou problemas de saúde e precisou vir a Brasília para tratamento. A partir de então, começou a viver com Kamiru e dois irmãos em uma das quatro casas que a Atini mantém no DF. A ONG sobrevive por meio de doações de igrejas evangélicas e pessoas físicas.

Márcia Suzuki, presidente da Atini, reconhece que os meninos índios mudam os hábitos ao entrar na rede escolar. “Alguns apresentam dificuldades, mas a maioria reage bem”, garante. O rapaz suruwaha que estuda na 316 Norte está recebendo tratamento psicológico custeado pela ONG. “A vontade dele é voltar para a aldeia, mas a mãe não quer. Acha que o estudo será útil. Ele será o primeiro suruwaha a falar o português”, aposta Márcia Suzuki.

Intervenção Ao contrário dos especialistas ouvidos pela reportagem, ela não acredita que os meninos vão se desvincular das aldeias por causa das experiências às quais estão sendo submetidos. Na opinião dela, eles continuarão a valorizar a cultura de onde vieram. “Nas casas, pedimos que falem as línguas nativas e aproximamos a alimentação com o que eles comiam nas tribos”, relata.

Apesar do caráter humanitário com o qual são apresentadas, as ações da Atini são questionadas pela Funai. “O grupo está intervindo em uma realidade cultural que não é a deles. Ditam o que é certo e errado a partir de valores deles”, aponta Gustavo Menezes, coordenador de apoio pedagógico da Funai. Antropólogo, ele ressalta que a Funai é a favor da vida, mas discorda de intervenções culturais e religiosas de grupos externos à realidade das aldeias. “Por mais que a causa pareça importante, são os índios que devem se posicionar sobre dela. Qualquer opinião que venha de fora é preconceituosa porque está baseada em outro sistema de valores”, afirma Gustavo Menezes.