Bebês indígenas, marcados para morrer
Por razões culturais, crianças indesejadas são sacrificadas nas aldeias
Ainda que inaceitável em nossa sociedade, o assassinato de bebês indesejados é algo tão antigo quanto a própria humanidade. Até mesmo expoentes do pensamento grego, como Aristóteles e Platão, eram capazes de frases que, sem o devido crédito, poderiam facilmente ser atribuídas aos mais ensandecidos e vis déspotas. No entanto, as idéias de tais pensadores encontraram eco na antiga Roma, que apoiava moral e legalmente o infanticídio, caso se constatassem deficiências físicas ou psíquicas.
Embora não se possa supor que as idéias dos pensadores da Antiguidade clássica tenham afetado o modo de viver e agir dos índios brasileiros, fato é que, a cada ano, centenas de crianças são sacrificadas no meio da selva, por conta de tradições culturais, quando ocorre por exemplo o nascimento de gêmeos ou de bebês com algum problema físico.
Não existem números precisos. De acordo com a assessoria de imprensa da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), cabe à Fundação Nacional do Índio (Funai) identificar esses casos, uma vez que se trata de um traço cultural. Já a Funai alega que os dados devem ser obtidos na Funasa, que gerencia as atividades dos distritos sanitários nas aldeias. O pouco que se sabe sobre o assunto provém de fontes como missões religiosas, estudos antropológicos ou algum coordenador de posto de Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) que repasse as informações para a imprensa, antes que elas sejam enviadas ao Ministério da Saúde e lá se transformem em “mortes por causas mal definidas” ou “externas”.
É o caso do médico sanitarista Marcos Pellegrini, que até 2006 coordenava as ações do DSEI-Yanomami, em Roraima. Lá, de acordo com levantamentos feitos por ele, 98 crianças indígenas foram assassinadas pelas mães em 2004. Em 2003 foram 68, fazendo dessa prática cultural a principal causa de mortalidade infantil entre os ianomâmis, uma etnia de caçadores-agricultores formada por 28 mil indígenas que vivem no norte da Amazônia.”
Os ianomâmis constituem o povo mais primitivo do planeta. Se uma criança nasce com qualquer problema físico, eles matam. Se a mãe tiver duas meninas, por exemplo, e nascer outra, eles matam também. Trata-se de uma questão cultural, e nós, da Funasa, não trabalhamos com isso. Todos os números são repassados para a Funai”, explica o assessor de comunicação da Funasa de Roraima, Ribamar Rocha.
Números confusos De acordo com dados do livro Saúde Brasil 2006 – Uma Análise da Desigualdade em Saúde, publicado no início de 2007 pelo Ministério da Saúde, a taxa de mortalidade entre os indígenas, até os 5 anos de idade, é de 30%. Em 2004, 626 bebês indígenas morreram antes de completar 1 ano. Dentre esses óbitos, 107 tiveram razões misteriosas (causas externas 2,3%, mal definidas 12,5% e outras 2,3%).”
Os óbitos entre crianças menores de 5 anos na população indígena devem-se principalmente a condições de pobreza, como desnutrição, pneumonias e diarréias. Não temos como dizer se fatores culturais, como o infanticídio, contribuem para a elevação da taxa de mortalidade infantil. O sistema de coleta de dados não tem esse tipo de informação”, explica Maria de Fátima Marinho de Souza, da Coordenação Geral de Informações e Análise em Epidemiologia do Ministério da Saúde.
A Funasa, por meio de sua assessoria, alega que os números levantados pelo Ministério da Saúde estão em desacordo com o total de óbitos entre os aldeados (as informações que constam do livro Saúde Brasil 2006 incluem tanto os índios que vivem em aldeias como os que estão em áreas urbanas), mas não soube dizer quais as causas de morte entre aqueles que estão nas tribos nem se práticas culturais interferem nesses dados. A taxa de mortalidade infantil nas aldeias, segundo o órgão público, foi de 39,1 óbitos para cada mil nascidos vivos no ano passado, bem mais elevada do que a verificada entre a população brasileira, que é de 23,6. As duas, no entanto, estão bem acima do que a Organização Mundial da Saúde (OMS) estipula como aceitável, que é de dez óbitos por mil nascidos vivos.
Cortina de fumaça Para o coordenador de Assuntos Externos da Funai, Michel Blanco Maia e Souza, os casos de infanticídio não merecem maior atenção do governo. “Não temos esses números, mas acredito que sejam episódios isolados.” Segundo Souza, a preocupação com os homicídios de bebês nas tribos vem sendo expressada por missões religiosas, que vêem no debate uma oportunidade de permanecer em territórios indígenas isolados. “Estão tentando usar essa questão para criar uma cortina de fumaça e desviar o foco do problema da interferência de seus missionários na cultura dos índios”, diz ele, alegando que o trabalho de algumas organizações é meramente proselitista.
Na avaliação do coordenador, a Funai e a Funasa dão a assistência necessária aos índios para evitar a matança de crianças. “Se há bebês que nascem com problemas, já temos profissionais e médicos que oferecem soluções e tratamentos para evitar que sejam sacrificados. Mesmo entre grupos nômades, quando a mulher tem vários filhos, damos assistência para que ela não mate nem abandone alguma criança. Mas são episódios raríssimos. Desconheço outras formas de infanticídio que estejam sendo praticadas”, conclui o funcionário da Funai.
Não é o que pensa Márcia Suzuki. Etnolingüista com mestrado em lingüística indígena pela Universidade Federal de Rondônia, ela esteve no centro do imbróglio causado pela retirada de dois bebês da tribo suruuarrá, em 2005, para tratamento médico em São Paulo. Na ocasião, Funasa e Funai acusaram os missionários evangélicos da organização Jovens com uma Missão (Jocum), que atuavam na área dos suruuarrás – uma tribo isolada, com cerca de 130 índios –, de “seqüestrar” as crianças. Márcia e seu marido, Edson Massamiti, que faziam parte da missão religiosa, defenderam-se, apresentando documentos de autorização assinados por funcionários do posto da Funasa de Lábrea, no Amazonas, que liberavam o translado dos bebês e seus familiares. “Se eles não fossem levados para tratamento, certamente seriam sacrificados”, afirma Márcia.
Uma das crianças, Iganani, era portadora de paralisia cerebral e a outra, Tititu, recebeu o diagnóstico de hermafroditismo. Iganani chegou a ser deixada na mata para morrer, mas sua avó conseguiu convencer a mãe a ficar com ela. Já Tititu quase foi morta pelo pai, que ameaçou flechá-la, mas acabou decidindo levá-la até os “brancos”, para ver se saberiam o que fazer.
Voz pelas crianças indígenas “Muwaji, a mãe de Iganani, é o principal símbolo de nossa luta. Ela nos pediu ajuda e a atendemos”, explica Márcia, que fundou no fim do ano passado a Atini (voz, em suruwahá), uma organização não-governamental (ONG) cujo objetivo é “erradicar a prática do infanticídio nas aldeias indígenas do Brasil”. Buscando alcançá-lo, somou forças com políticos, antropólogos, advogados, geólogos e lideranças indígenas. “Temos percorrido diversas partes do país e contatado ONGs internacionais e até mesmo a Organização das Nações Unidas (ONU) com o intuito de denunciar essa prática”, explica a etnolingüista, que viveu por 20 anos entre os suruuarrás e os saterés-maués. “Nesse período ocorreram 28 casos de infanticídio somente entre os suruwahás.”
Desde a criação da Atini, ela contabiliza, por meio de pesquisas feitas com informações de missões religiosas, DSEIs, reportagens e dados da Funasa, que nos últimos quatro anos cerca de 500 crianças teriam sido assassinadas por razões culturais. “Estamos tentando entender o infanticídio no Brasil, mas os dados são esparsos e não muito seguros.”
Na opinião de Márcia Suzuki, um dos principais entraves para que o infanticídio deixe de ocorrer entre os indígenas está no campo político-cultural. Para ela, existe uma visão idealizada do índio. “Isso é reflexo de nossa história e do que aconteceu no Brasil, com a dizimação de tribos. Há um sentimento de culpa nacional. As pessoas acham que se você preservar a cultura indígena, mesmo com a morte de crianças, a dívida com os índios será paga, o que não é verdade”, afirma.
Suas opiniões chocam-se contra a corrente antropológica, segundo a qual o bem e o mal são relativos em cada cultura. O “bem” coincide com o que é “socialmente aprovado”. “A questão do infanticídio é muito complexa e não pode ser analisada separadamente da cultura e da cosmologia de cada povo. É perigoso tratar desse assunto como se fosse um fenômeno único, pois o que o Ocidente chama de infanticídio tem significado muito diferente em outras culturas”, explica Stephen Grant Baines, antropólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ele, o assunto é polêmico e cabe apenas à sociedade indígena decidir se deve ser encarado como um problema de saúde pública. “Acho que pessoas de fora [da aldeia] não deveriam interferir, a não ser que os próprios indígenas solicitem uma discussão sob a ótica dos direitos humanos.”
Aspectos legais A advogada Maíra de Paula Barreto discorda e pede uma ação, por parte do governo, para frear os casos de sacrifício de crianças nas tribos. “Sou a favor dos direitos humanos como algo universal, comum a todos os povos. Acredito que quando há choque com a cultura, o que prevalece são os direitos fundamentais”, afirma a pesquisadora, que é doutoranda pela Universidade de Salamanca, na Espanha, onde analisa, para sua tese acadêmica, a posição do governo brasileiro diante dos homicídios de recém-nascidos indígenas.
Maíra, que também faz parte do conselho consultivo da Atini, considera a prática cultural do infanticídio um atentado aos direitos humanos. “No Brasil, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), todas as crianças devem ser protegidas. Além da Declaração dos Direitos da Criança, da ONU, é lei que o Estado deve abolir práticas tradicionais que causem violações à integridade física dos menores”, considera. Segundo ela, o artigo 231 da Constituição, sobre a preservação dos valores culturais, deve ser entendido a partir do artigo 5º, que trata da proteção à vida.
Ela lembra que o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, onde está definido que a cultura indígena ou tribal deve se submeter aos direitos humanos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional e internacional. “Acho que o governo deveria ter coerência, ou seja, se quer defender o relativismo cultural no Brasil, que denuncie os tratados de direitos humanos – o que significa retirar sua assinatura desses documentos. O direito à vida é inato, independente de etnia ou crenças”, afirma Maíra.
O tema já chegou ao Congresso Nacional, onde reuniões entre representantes da Funai, da Funasa e de ONGs foram agendadas na Comissão da Amazônia, Integração Nacional e de Desenvolvimento Regional e na de Direitos Humanos e Minorias.
Francisco Loebens, coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), discorda que o Estado deva intervir na prática cultural. “Historicamente, a interferência externa nas soluções encontradas pelos povos indígenas, tendo como referência os padrões culturais do Ocidente, tem gerado mais problemas para essas culturas. Infelizmente, o Estado brasileiro tem se ocupado muito em acabar com as diferenças, em vez de compreendê-las”, analisa.
Segundo Loebens, o atual modelo indigenista adotado pelo país inviabiliza uma aproximação entre agentes do poder público e povos indígenas, para uma interferência na questão do infanticídio. “Não se trata aqui de assistência médica ou psicológica, mas de distintas visões de mundo. O diálogo com base no conhecimento e respeito do outro é o melhor caminho, pois certamente nos levaria também a reconhecer nossos defeitos, inclusive a violência praticada contra crianças na nossa sociedade, em vez de enxergá-los só nos outros”, afirma. Ele não acredita que a alta taxa de óbitos entre as crianças tenha ligação com práticas culturais e considera que a mortalidade infantil esteja mais relacionada à falta de terras e às más condições de saúde dos índios. “Inserir o infanticídio como uma das causas de morte seria transferir o problema para as comunidades indígenas em vez de buscar políticas públicas mais adequadas”, aponta Loebens.
Terra e saneamento A professora Carla Costa Teixeira, responsável pelo Departamento de Antropologia da UnB, também descarta que os homicídios culturais sejam numericamente significativos e, em coro com o indigenista do Cimi, aponta como fatores principais para a mortalidade infantil os problemas territoriais, a falta de alimentos e a ausência de saneamento adequado. “É óbvio que há elementos culturais. O que digo é que não há comida suficiente. Isso é sério e não pode ser resolvido apenas com a distribuição de cestas básicas”, diz, citando o caso de Dourados (MS), onde dezenas de crianças indígenas vêm apresentando um quadro de desnutrição aguda. Muitas, inclusive, morrem por falta de alimentação.Em sua opinião, o infanticídio não pode ser enquadrado como uma das causas do elevado número de óbitos entre as crianças indígenas. Ela considera “um argumento perverso” vincular práticas culturais com mortalidade infantil.Segundo Carlos Everaldo Alvares Coimbra Junior, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, “temos pouco conhecimento sobre o infanticídio entre os indígenas. Além disso, os números oficiais não são confiáveis. Morre mais gente do que é contado, inclusive devido à ineficiência dos programas de saúde voltados aos índios”. Doutor em antropologia pela Universidade de Indiana (EUA), Coimbra acredita que o problema começa na conceituação do que é “infanticídio” entre os indígenas, já que na sociedade brasileira o termo é aplicado aos casos em que a mãe mata o filho durante o puerpério – período necessário para que o estado geral da mulher retorne às condições anteriores à gestação.De acordo com o pesquisador, é necessário um acompanhamento dos casos de assassinato de bebês nas aldeias. “Se alguns médicos dizem que mães estão matando seus filhos na proporção que consta do relatório dos ianomâmis, então é necessária uma investigação séria. Essas mulheres não são assassinas vulgares. Acho que estão sofrendo também”, pondera.Coimbra acredita que o caminho seja buscar entender as razões para os infanticídios. “Não posso admitir que simplesmente se criminalize a mulher indígena ou que naturalizemos uma prática dessas em nome da cultura; acho que é necessário ir até lá para saber o que está acontecendo.”
Prática comum Apesar da ausência de números confiáveis, a prática do infanticídio é algo comum entre as comunidades indígenas e já foi documentada em diversos estudos antropológicos. Os motivos alegados para o sacrifício de crianças são os mais diversos, como o nascimento de bebês com deficiências físicas ou mentais, gêmeos, filhos de relacionamentos extraconjugais, a preferência pelo sexo masculino, a ocorrência de partos muito próximos um do outro, sonhos ou maus presságios.Normalmente os recém-nascidos são abandonados no meio da mata, enterrados vivos (para que, segundo a tradição, possam ver a passagem para o “outro mundo”), asfixiados com folhas ou envenenados. Há também relatos de bebês flechados ou mortos a golpes de facão. Entre as tribos em que o sacrifício de bebês é relatado estão as etnias ianomâmi, suruuarrá, uaiuai, bororo, tapirapé, caiabi, ticuna, amondaua, uru-eu-uau-uau e paracanã.”Ninguém fala sobre o infanticídio, não é algo que eles se sintam confortáveis em comentar. É um tabu”, explica Yumi Gosso, doutora em psicologia experimental pela Universidade de São Paulo (USP), que estudou a vida dos índios paracanãs. Segundo ela, apesar de ser inaceitável em nossa sociedade, a prática encontra razões no ambiente das tribos, onde o trabalho é muito duro para as mães. “Imagine o que seria cuidar de duas crianças gêmeas na aldeia. Isso colocaria em risco a vida das duas”, avalia. A pesquisadora explica também que os indígenas não criam um laço afetivo com o bebê logo que ele nasce. “Existe um período até que se estabeleça um relacionamento entre mãe e filho.”
Causas da mortalidade infantil
Percentual de óbitos entre crianças indígenas menores de 1 ano de idade (dados de 2004)Afecções perinatais: 29,2%
Problemas respiratórios: 20,2%
Doenças infecciosas: 12,9%
Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas: 11,7%
Malformações congênitas: 8,8%
Causas mal definidas: 12,5%
Causas externas: 2,3%
Outras causas: 2,3%
Revista Problemas Brasileiros, maio/junho 2007
Marcelo Santos
Fonte: “Saúde Brasil 2006 – Uma Análise da Desigualdade em Saúde”, Ministério da Saúde