Índia suruarrá rejeitada pela família escapa da morte com ajuda de missionários e ganha um novo lar
MARCELO ABREU DA EQUIPE DO CORREIO
Nas olimpíadas da escola — onde estuda desde abril do ano passado —, ela brinca, joga queimada e adora corrida. Dá nó em pingo d’água. No recreio, não dispensa um pedaço de bolo de chocolate com morango. Na Feira Cultural, quando a turma desenvolveu o projeto Salve a Amazônia, sob o comando da professora Deise Boechat, ela fez o papel de uma das três indiazinhas na peça Tutu, o menino índio. Aos 12 anos, na 2ª série, é uma das alunas mais animadas. Contagia pelo sorriso espontâneo e está sempre disposta a ajudar os coleguinhas. Camila, de 8 anos, é sua melhor amiga. As duas fazem as tarefas juntas, uma conta história para outra, uma escuta a outra. Se entendem até no silêncio. “Ela é divertida, engraçada e uma amiga muito legal. Adora o boneco Tutu, fez até roupa pra ele”, confidencia Camila.
Essa é a melhor e mais emocionante parte da história da pouca vida de Ana Hakani, que venceu os horrores da rejeição e a morte sucessivas vezes. Até completar 5 anos, ela simplesmente não existia. Não era considerada gente. A menina é índia da tribo Suruarrá, etnia semi-isolada no sul da Amazônia, onde vivem atualmente apenas 141 pessoas. Era a quinta e única filha de Dihiji, um dos maiores caçadores da tribo, e Bujini, mulher forte e boa parideira.
O nascimento do bebê foi comemorado. Teve canto e dança na selva. Teve corpos pintados em ritual sagrado. Afinal, era a primeira menina da família. Como sorria muito, a mãe não hesitou em dar-lhe o nome de Hakani — que significa sorriso na língua falada pelos suruarrás. Mas, meses depois do parto, Bujini começou a perceber que Hakini era diferente. E a comparou ao irmão, Niawi, um ano mais velho. O menino não andava, não falava e enfrentava o preconceito de parte da comunidade, que não o aceitava.
Na crença da tribo, o menino era filho de um espírito mau, que sem permissão da mãe, a teria engravidado durante o sono. Os suruarrás acreditam que criança com algum tipo de deficiência não é ser humano. E o fim deles é a morte. Sem apelos, sem condescendência. Sem ritual. E assim, em meio ao temor da mãe e do pai com o destino da filha, Hakani completara meses de vida. A deficiência neuromotora ficara mais visível. Perto dos 2 anos, a menina foi, definitivamente, condenada à morte. Com ela, o irmão Niawi. Cabia aos pais a execução. Com as crianças, a morte é selada com um gole de timbó — espécie de chá, feito do veneno de um cipó.
Os pais, porém, não tiveram coragem de dar o chá venenoso para os dois filhos. Em vez disso, eles mesmos tomaram. E morreram agonizando. Deixaram cinco irmãos órfãos. O mais velho deles, Aruwaji, então com 15 anos, virou o responsável pela família. E seguiu, influenciado pela tribo, com a missão de matar os dois irmãos deficientes. Tentou matar os dois a pauladas na cabeça. Fez uma cova rasa e os jogou ali, desmaiados. Enquanto jogava terra, Hakani chorou. Sem reagir, Niawi foi enterrado ainda vivo. Há quem tenha escutado, horas depois, seu choro debaixo da terra. Ninguém teve coragem de salvá-lo.
Sofrimento sem fim
Ninguém — nem tios, nem avós — quis cuidar da menina. Bibi, um irmão do meio, então com 9 anos, compadeceu-se com o sofrimento de Hakani. E passou a cuidar dela, mesmo contra toda a comunidade e os próprios parentes. Dava-lhe banho e comida. Certa vez, o avô materno flechou a neta, entre o ombro e o peito. Hakani sobreviveu, mais uma vez. Aruawaji, o irmão mais velho, passou a ser hostilizado pela tribo por não ter conseguido matá-la. Transtornado, também tomou o timbó. O avô também fez o mesmo.
E assim, a família foi se dizimando. Entres os suruarrás, o índice de suicídio é comum, e considerado o mais alto entre todas as etnias do país. Para eles, é o caminho que os leva ao encontro com seus ancestrais. Por rejeitar qualquer decadência física, sobretudo a de nascença, o infanticídio é também um ato até heróico. Hoje, na família de Hakani, o único vivo é Bibi, com 18 anos, aquele que, ao modo dele, cuidou da irmã e não a deixou morrer.
Aos 5 anos, Hakani não passava de 68cm e pesava cerca de 7kg. Vivia escondida. Não andava, não falava, não se comunicava. Nem a língua da sua tribo ela dominava, já que ninguém a enxergava, exceto Bibi. Em 2000, um casal de missionários presenciou o drama de Hakani. E começou uma verdadeira luta para salvá-la.
O paulista Edson Suzuki, hoje com 45 anos, e a mulher Márcia, carioca, 44 , estavam na região desde 1986. Lingüista, o casal estudava os índios suruarrás. Como sabiam falar a língua deles, fizeram os primeiros contatos com os parentes de Hakani. A avó materna lhes disse: “Não queremos nem vamos cuidar dessa menina”.
Com permissão da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), o casal teve permissão para levar Hakini à primeira consulta, em Porto Velho. Lá, depois de alguns meses de exames, o primeiro diagnóstico: o “espírito mau” de Hakani (e do irmãozinho enterrado vivo) era causado pelo hipotireoidismo congênito, que, dentre outras coisas, afeta a produção de hormônios do crescimento. De Porto Velho, por recomendação dos especialistas, Edson e Márcia levaram a menina para o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (SP), onde o tratamento foi mais longo e todas as causas checadas.
Adoção plena
Aos seis anos, com medicação e alimentação corretas, Hakani começou a falar, andar, engordar e crescer. Aos poucos, se transformava. Mas havia um problema que afligia o casal. E depois, Hakani voltaria à tribo que a rejeitara? Começou, então, a peregrinação pela guarda da menina. Depois de cinco anos lutando no Juizado da Infância de Manaus, o juiz finalmente lhes concedeu a adoção. Edson e Márcia tiveram a permissão de chamá-la de filha. “Na hora em que a peguei no colo pela primeira vez, me senti mãe. Chorei muito. A vida de uma criança não tem preço”, reflete Márcia.
A indiazinha suruarrá recebeu o nome de Ana Hakani dos Santos Suzuki. Ganhou finalmente pai, mãe. É a única filha do casal de missionários, que, pelas constantes viagens às tribos indígenas, sempre adiava o desejo do primeiro filho. No ano passado, a família desembarcou em Brasília. Hakani foi matriculada no Leonardo da Vinci, na 914 Norte. Lá, recebeu o apoio, a acolhida e aceitação incondicionais da direção, dos professores e, principalmente, dos novos amiguinhos.
Faz natação, acompanhamento com uma fonoaudióloga e terapia. Hoje, com a medicação, Hakani mede 1,23m e pesa 35kg. Encantado com a filha, Edson se penitencia: “Hoje, só sinto tristeza por não ter tido a coragem de fazer isso antes. Ela viveu três anos abandonada e sofrendo todos os horrores. E ainda tem gente que defende a tese de que ela devia permanecer na sua tribo, que não tínhamos o direito de tirá-la de lá”.
Na escola, a professora Deise Boechat, 42, se emociona: “Hakani foi um presente do céu para todos nós. Ela só veio somar”. As amigas de classe Ana Carolina Heinen e Renata Pomelli, ambas de 7 anos, são fãs de Hakani. “Ela é bem legal”, diz Ana. Renata emenda: “A gente brinca muito no recreio”. Camila de Oliveira Zem, 8, a favorita amiga, ensina, dando um chute a qualquer sinal de preconceito: “Ela é igualzinha a gente. Eu nem lembro que ela é índia”.
Hakani escuta a amiga falar. Comovida, devolve: “Ela é minha melhor amiga aqui na escola”. De mãos dadas, as duas saem correndo pelos corredores. Hakani está visivelmente feliz. Há muito para conversar, brincar, aprontar. Há muito para viver. Essa é uma história onde quase tudo era improvável. Até mesmo o direito de viver.